Mas uma vez, valho-me do excelente resumo que minha querida amiga CARLA RUSSO fez do livro Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, do filósofo Frances Comte-Sponville.
Dentre as 18 virtudes mencionadas no livro, escolhi A Doçura, uma virtude que nós homens temos dentro de nós bem escondida e “trancada a sete chaves”, temerosos que somos de externá-la. Penso que chegou o momento de demonstrá-la, sem medo e sem o receio (ilusório) das conseqüências, pois o mundo que desejamos e sonhamos para nós e nossos filhos depende, fundamentalmente, da nossa coragem de colocá-la em prática.
A DOÇURA
A doçura é uma virtude feminina. É por isso, talvez, que ela agrada, sobretudo, os homens.
Poderão objetar-me que as virtudes não têm sexo, o que é verdade. Mas isso não nos dispensa de o ter, e o sexo marca todos os nossos gestos, todos os nossos sentimentos e até as nossas virtudes. A virilidade, não é uma virtude. Mas há uma maneira mais ou menos viril, ou mais ou menos feminina de ser virtuoso. Nascemos mulher ou homem, depois nos tornamos o que somos. A virilidade não é nem uma virtude nem uma falta. Mas é uma força, assim como a feminilidade é uma riqueza (inclusive nos homens), e uma força também, mas diferente. Tudo em nós é sexuado – salvo a verdade. Que diferença é mais rica e mais desejável?
O homem só é salvo do pior, quase sempre, pela parte de feminilidade que traz em si.
O que a doçura tem de feminino é uma coragem sem violência, uma força sem dureza, um amor sem cólera. A doçura é antes de mais nada uma paz, real ou desejada: é o contrário da guerra, da crueldade, da brutalidade, da agressividade, da violência… Paz interior, e a única que é uma virtude. Muitas vezes permeada de angústia e de sofrimento, às vezes iluminada de alegria e de gratidão, mas sempre desprovida de ódio, de dureza, de insensibilidade.
É amor em estado de paz, mesmo na guerra, tanto mais forte quando é aguerrido, tanto mais doce. A agressividade é uma fraqueza, a cólera é uma fraqueza,a própria violência quando já não é dominada, é uma fraqueza. E o que pode dominar a violência, a cólera, a agressividade, senão a doçura? A doçura é uma força, por isso é uma virtude: é força em estado de paz, força tranquila e doce, cheia de paciência e de mansuetude. Veja-se Cristo ou Buda, com todos. A doçura é o que mais se parece com o amor, sim, mais ainda que a generosidade, mais ainda que a compaixão. A compaixão sofre com o sofrimento do outro; a doçura se recusa a produzi-lo ou a aumentá-lo. A generosidade quer fazer bem ao outro; a doçura se recusa a lhe fazer mal. Quantas generosidades importunas, porém, quantas boas ações invasoras, esmagadoras, brutais, que um pouco de doçura teria tornado mais leves e mais amáveis?
Notável fórmula de Pavese: “Você será amado no dia em que puder mostrar sua fraqueza, sem que o outro se sirva dela para afirmar sua força.”
A doçura submete-se ao real, à vida, ao mais ou menos do cotidiano: virtude de flexibilidade, de paciência, de devoção, de adaptabilidade. A humanidade não inventa a doçura. Mas a cultiva, mas se alimenta dela, e é isso que torna a humanidade mais humana. É a recusa a fazer sofrer, a destruir, a devastar. É respeito, proteção, benevolência.
“Faz teu bem com o menor mal possível ao outro.” Essa máxima da doçura, menos elevada do que a da caridade e menos exigente, é também mais acessível, por isso mais útil de fato, e mais necessária. Podemos viver sem caridade, toda a história da humanidade o prova. Mas sem um mínimo de doçura, não.
Os gregos, em especial os atenienses, gabavam-se de ter levado a doçura ao mundo. É que viam na doçura o contrário da barbárie e, portanto, um sinônimo aproximado da civilização. O que é a doçura (praotés) para um grego antigo?
No nível mais modesto, a doçura designa a gentileza das maneiras, a benevolência para com o outro. Mas ela pode intervir num contexto muito mais nobre. Manifestando-se em relação aos infortunados, ela torna-se próxima da generosidade ou da bondade; em relação aos culpados, torna-se indulgência e compreensão; em relação aos desconhecidos, torna-se humanidade e quase caridade. Na vida política, ela pode ser tolerância, clemência, conforme se trate das relações com cidadãos, com súditos ou com vencidos.
Na origem desses diversos valores está, porém, uma mesma disposição a acolher o outro como alguém a quem queremos bem – pelo menos em toda a medida em que podemos fazê-lo sem faltar com algum outro dever. E o fato é que os gregos tiveram o sentimento dessa unidade, pois todos esses valores tão diversos podem, ocasionalmente, ser designados pela palavra praos.
Virtude feminina, graças à qual – e só a ela – a humanidade é humana.